terça-feira, 4 de novembro de 2014

Olá Bó-Belha

Lembro-me perfeitamente dela, a minha bisavó, como se estivesse aqui. As memórias, aquelas que sabemos contar como se tivessem sido ontem, não são assim muitas.

Lembro-me do avental dela. Era daqueles sem peito, de tecido fino, as vezes áspero, em tons escuros, tons que faziam lembrar a terra, o quintal, a capoeira das galinhas, mesmo ali à beira da cozinha. Lembro-me dela a usar o avental para estancar o sangue do meu nariz numa tarde quente de verão, no meio do campo, enquanto esperava que a àgua da rega percorresse todos os pés de milho. Se for lá a casa ainda está um avental pendurado no cabide de parede à porta da cozinha.

Lembro-me da cozinha dela. Um fogão pequenino, a prateleira dos pratos, com ganchos da parte de baixo para pendurar tachos, a cafeteira, a saca do pão e o saquinho dos medicamentos, os bancos de 4 pernas, a lareira antiga com a panela de 3 pernas e a cortina em baixo da pia da loiça. Lembro-me dela a dizer para nao mexer na colher que tinha veneno, uma daquelas colheres, que hoje frequentemente vejo nas feiras, ligeiramente bicuda e com a imagem de um santo na pega. Era a colher de se tomar os medicamentos. Se for lá a casa, ainda estará na gaveta da mesa da cozinha.

Lembro-me da prateleira na parede do pátio, com os vazos das avencas. Lembro-me de ainda não haver casa de banho e detestar ter que ir fazer xixi no "carreirinho" do quintal. Lembro-me da eira, com uma imensidão de vista para os campos, onde se punha o milho a secar ao sol, e do pequeno armazém na eira, onde se guardavam as espigas de milho, os caroços do milho, as cebolas entrançadas, e as 2 cadeiras de praia onde se sentava nas tardes de domingo durante o verão.

Lembro-me da casa de praia, na Barra, para onde nos mudávamos durante o mês de setembro, quando se pedia a um amigo para com a carrinha dele, levar as roupas, as loiças, os tachos e panelas, o frigorifico, as almofadas e cobertores, as cadeiras de praia, o guarda-sol e o pára-vento. E o rádio, aquele mesmo rádio da cozinha dela, que preenchia os dias na casa da praia.

Lembro-me do lenço dela na cabeça. Lembro-me dela não ter pápas na lingua e de não se privar de dizer uma asneira. Lembro-me de a ver na missa aos domingos de manhã e dos sofás de napa vermelha da sala no 1º andar da casa, que só se usava no domingo de Páscoa para receber a Cruz.

Lembro-me da mão dela práticamente fechada, e dos seus dedos não esticarem por causa da queda do lagar. Lembro-me dela viver com a mão assim durante anos e de fazer tudo igual. Lembro-me de todas as vezes que, sentada à sua beira, tentava esticar-lhe os dedos. Lembro-me de lhe chamar "velha dos dedos partidos" e  de ela se rir e nunca levar a mal. Lembro-me dela, já acamada, ainda cruzar os braços tal qual o Zé Povinho.

Lembro-me do dia em que recebi a notícia de como me aninhei no chão da sala, na casa onde morava. Lembro-me da viagem até casa. Lembro-me de estar sentada a receber sentimentos de pessoas, que nem fazia ideia quem sejam. Lembro-me de pensar que seria igual, melhor até, se apenas entrassem na igreja e se mantivessem ali.

Não me lembro de muito desse dia. Não quero. Não me lembro dela nesse dia. Ainda bem. Lembro-me que passaram quase 8 anos, e fui visita-la duas vezes. Sei que ela não se importa, porque ela está comigo. No sábado fui visitá-la, olhei para a fotografia dela e consegui sentir a pele do seu rosto, macia, todas as vezes que a cumprimentava com um beijo. Disse-lhe "Olá Bó-Belha. Olá velha dos dedos partidos."

Pedi-lhe um favor. Sorri-lhe.

Vim embora.

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